Saiba quem são as seis crianças mortas pela violência no Rio em 2019
Maioria era negra, vivia em comunidade e foi baleada na presença da polícia; investigações não foram concluídas
RIO DE JANEIRO , RJ (FOLHAPRESS) - Jenifer, Kauan, Kauã, Kauê, Ágatha e Kethellen. Os seis nomes se juntaram em 2019 aos outros 62 que já estavam estampados em placas pretas num dos principais pontos turísticos cariocas, a Lagoa. Trata-se de todas as crianças baleadas e mortas na região metropolitana do Rio de Janeiro desde 2007.
Com idades entre 5 e 12 anos, essas crianças têm em comum a infelicidade de terem estado no local errado na hora errada. Mas não só. A maioria morava em comunidade, era negra, tinha mãe solteira, foi atingida na presença da PM. As investigações das mortes não foram concluídas.
A versão da corporação também é parecida em quase todos os casos: agentes que foram atacados por criminosos e, após o conflito, acharam as crianças já mortas ou feridas. Em alguns dos casos, a versão oficial sofreu alterações após relatos de parentes ou reportagens.
Procurada, a Secretaria Estadual de Vitimização, criada na gestão do governador Wilson Witzel (PSC), ressalta que oferece atendimento psicológico, jurídico e serviços de sepultamento a vítimas de violência e a seus familiares.
Os números são da ONG Rio de Paz, que contabiliza apenas as mortes noticiadas pela imprensa e considera a idade de até 14 anos. Deixa de fora, portanto, os adolescentes. Uma média de 31 meninos e meninas de 10 a 19 anos foram mortos no país a cada dia em 2015, segundo a Unicef.
'MÃE, O TIRO PEGOU EM MIM'
Naquele 14 de fevereiro, Jenifer Cilene Gomes, 11, não foi para a escola porque ficou com medo de passar pelo túnel frequentado por usuários de drogas. Ela voltou mais cedo para o barraco onde morava com dois de seus 15 irmãos e a mãe.
Katia Cilene, 43, fazia feijoada e Jenifer estava sentada na porta conversando com colegas quando policiais à paisana, segundo moradores, entraram atirando na estreita viela principal da favela Vila Nova Jerusalém, embaixo de uma estação de metrô na zona norte carioca.
"Mãe, o tiro pegou em mim" foi o que disse quando viu o sangue em seu peito. "Tá vendo aí como a gente está te ajudando" foi o que disse um dos policiais enquanto as levava para o hospital na viatura. Em certo momento, a menina parou de abrir os olhos quando a mãe a chamava.
Foi tarde para realizar o sonho de comprar uma casa com piscina para a família ou se inscrever nas aulas de basquete.
Também não deu tempo de superar as dificuldades com a leitura nem de encher novamente o quarto de amigas para brincar com sua boneca Baby Alive preferida.
Katia, hoje com a pressão descontrolada e sem poder trabalhar no seu mercadinho, nunca recebeu notícias da investigação, há dez meses sem conclusão.
A PM afirma que os agentes acharam a menina já baleada quando foram checar uma ocorrência de roubo de carga e que ninguém efetuou disparos. Mais um homem morreu e outro ficou ferido durante a ação.
'NÃO VOU CORRER, NÃO SOU BANDIDO'
Kauan Peixoto, 12, achava tão bonita a farda dos policiais militares que quando crescesse queria ser um deles. Talvez por isso, quando os viu vindo pela rua no caminho da lanchonete, respondeu ao amigo que o alertou: "Eu não vou correr, não sou bandido".
Saiu de lá para o hospital com dois tiros, um nas costas e outro no rosto, e não resistiu. Depois disso, seus dois irmãos adolescentes, que também aspiravam ser PMs, não querem nem ouvir falar de serem convocados para o serviço obrigatório do Exército.
Kauan era conhecido no bairro onde morava, em Nilópolis (região metropolitana do Rio), por jogar futebol toda tarde depois da escola, na quadra da praça. No ano anterior, tinha parado de dar trabalho e escapulir da escola enquanto a mãe ficava no hospital com a irmã mais nova, que tem o fígado transplantado.
Ele fantasiava com o dia em que os pais, separados, voltariam a morar juntos. "É só uma fase", dizia. Foi em uma ida à casa do pai, em Mesquita, que tudo aconteceu, em 16 de março.
A mãe, Luciana Pimenta, 33, voltou ao local na mesma madrugada e diz ter achado uma luva hospitalar e nenhuma cápsula. A PM sustenta que uma patrulha foi atacada por criminosos e que, na retaguarda do confronto, encontrou o menino baleado.
O Ministério Público devolveu o inquérito à Polícia Civil para mais diligências e a investigação está em aberto. Luciana criou uma ONG que oferece cursos para evitar que crianças e adolescentes fiquem na rua.
'OBEDECE, RESPEITA A MAMÃE'
Um dia antes de ser baleado, Kauã Rozário, 11, fez uma espécie de despedida. "Obedece a mamãe, respeita a mamãe", disse enquanto beijava e abraçava sem parar o irmão caçula no caminho de volta da escola, emendando depois um "eu te amo, mãe", conta Simone Nunes, 33.
Foi no mesmo trajeto que ele foi atingido por tiros em 10 de maio, andando de bicicleta. Segundo moradores, policiais à paisana teriam perseguido e atirado em dois homens numa moto, mas acertaram também o menino e um mototaxista, que não resistiram. Kauã ficou seis dias na UTI antes de morrer.
Ele "não era muito de escola", diz Simone, mas gostava de matemática, adorava jogar bola e estava aprendendo a lutar jiu-jítsu num projeto social na favela onde morava, a Vila Aliança, em Bangu, zona oeste do Rio.
Queria entrar na aula de bateria para tocar na igreja evangélica que frequentava, mas não deu tempo. Bastante religiosa, a mãe acredita em outro tipo de Justiça. "Se não pagaram na terra, o Senhor vai cobrar. A Justiça do Brasil é falha, mas a de Deus não é".
Depois de depor no hospital, ela diz nunca mais ter sido procurada pela polícia, que ainda investiga o crime.
A Polícia Militar informou inicialmente que os baleados eram criminosos e que armas haviam sido apreendidas.
Depois, afirmou que policiais faziam um patrulhamento quando foram atacados por bandidos de moto. Teriam encontrado o mototaxista já morto e Kauã e um outro homem feridos.
'NÃO QUERO MORRER COMO BANDIDO'
Aos 11 anos, Kauê Ribeiro dos Santos comprou sua primeira caixa de balas para vender na rua. O dinheiro pagaria a chuteira e o uniforme para que continuasse jogando futebol todo dia na escolinha, até virar profissional e conseguir tirar sua mãe do morro.
O morro é o Complexo do Chapadão, na zona norte carioca, onde ele dormia com seus sete irmãos num mesmo cômodo, sem portas nem janelas. O aluguel, de R$ 200, quem paga é a amiga da família Nadia Santos, 42, hoje desempregada, que também perdeu um filho baleado.
Kauê frequentou a escola até o meio do ano, mas teve um problema para renovar a matrícula. Era tranquilo e tratava a todos com respeito. "Nunca vou me envolver com o tráfico, não quero morrer como bandido", disse a Nadia na última conversa que tiveram.
Morreu baleado na cabeça, aos 12 anos. No dia 8 de setembro, ele subia a rua de casa com um amigo depois de vender suas balas quando, segundo moradores, deu de cara com policiais que desciam a favela atirando. O amigo teria sido ameaçado e obrigado a carregar o corpo até o "caveirão". Está quieto até hoje.
"Não teve tanta repercussão. Botaram ele como bandido e ninguém quis saber", diz Nadia. A PM afirmou que agentes foram atacados por criminosos ao checarem um roubo de carga. Cinco pessoas ficaram feridas e foram levadas ao hospital -um deles seria Kauê. A Polícia Civil disse que concluiu o inquérito, mas o Ministério Público ainda não o recebeu.
'MÃE, EU VOU SER VETERINÁRIA'
"Mataram uma inocente, uma garota inteligente, estudiosa, de futuro. Fala inglês, tem aula de balé, aula de tudo." O desabafo do avô Airton Félix diante das câmeras, aos prantos, resume quem era Ágatha Vitória Sales Félix, 8, a quinta criança morta no Rio em 2019.
Balé, inglês, xadrez e matemática estavam entre as atividades da menina, que também se esbaldava com massinha, tinta guache e lápis de cor. "Mãe, eu vou ser veterinária", dizia ela até mudar de ideia e querer ser jardineira. Também andava ansiosa pela apresentação de fim de ano da dança.
Sua foto ficou estampada no palco durante o show para relembrar quem ela era antes daquela noite de 20 de setembro. Ágatha foi baleada nas costas dentro de uma kombi, no Complexo do Alemão (zona norte do Rio), quando voltava de um passeio com a mãe.
Herdou de Vanessa Sales, 32, o sorriso largo e os cachos definidos que a fizeram ser aprovada em um teste de fotos para modelos mirins. Perfeita é a descrição mais usada pela mãe, que diz que suas redações eram de cair o queixo e que suas conversas eram sempre olho no olho. "Não tinha malícia", descreve a secretária.
Sua morte foi a que causou a maior repercussão no ano, obrigando autoridades a darem respostas. Em 8 de dezembro, o PM Rodrigo José Soares virou réu por homicídio doloso. As investigações concluíram que ele atirou em direção a uma moto que achou suspeita e errou, num momento em que não havia confronto.
'NÃO BRIGA COMIGO, NÃO, VOVÓ'
Desde que Kethellen Umbelino de Oliveira Gomes, 5, se foi, há um vazio na casa, lamenta a tia-avó Daisy Costa, 60. Sapeca, a menina corria por todo lado e era a mais bagunceira dos vários primos que moram nas três construções conjugadas da família, separadas por um quintal.
As crianças ainda acordam e perguntam: "cadê a Keké?". Ela também era chamada de formiguinha pelo corpo miúdo, apelido que lhe causava risos. Depois de "pintar o sete", se virava com o rosto doce e dizia: "Não briga comigo, não, vovó"
Apesar de pequena, já estava decidida em relação à profissão. Ia estudar muito para ser massagista, técnica que ela usava para acalmar as pessoas de quem gostava. "Ela perguntava por que eu estava triste e dizia: então você toma seu banho, vai se deitar, que eu vou te fazer uma massagem", relembra Daisy.
Kethellen frequentava o primeiro ano em uma escola municipal em Realengo, zona oeste do Rio. Foi no caminho até lá que ela foi atingida na perna, no dia 12 de novembro, quando criminosos atiraram em Davi Gabriel do Nascimento, 17, que morreu no local.
"Mamãe, não chora", ela teria dito já baleada no colo da mãe, Jessica. Chegou a ser operada, mas perdeu muito sangue e se foi na terceira parada cardíaca.
No mesmo dia, a Polícia Civil prendeu Thiago Porto, que é conhecido como Thiago Cabeça e faria parte de uma milícia da região, sob suspeita de ter participado do assassinato. As investigações, porém, ainda não terminaram.