Liberdade de manifestação e de expressão nos Estados Unidos e no Brasil
As manifestações de protestos que estão ocorrendo nas universidades dos Estados Unidos contra os bombardeios e ataques por terra de Israel contra os palestinos em Gaza talvez sirvam para uma boa reflexão em torno de um tema bem atual no Brasil, que é o da liberdade de expressão.
Os protestos não dizem respeito especificamente à liberdade de expressão, e, sim, à liberdade de manifestação, mas o tipo de reação, que é a repressão, em muitos casos violenta, se presta muito bem a uma apropriação para a compreensão de como a Constituição e a sociedade americanas têm entendimentos bastante diferentes do brasileiro em relação às duas questões, o que não tem sido compreendido ou muito desvirtuado no debate político local.
Não vamos tratar aqui da natureza dos protestos, sempre profundamente polêmica, embora seja possível perceber que as manifestações se posicionam essencialmente contra ao massacre de populações indefesas (crianças, mulheres, idosos). No meio, há movimentos antissionistas, mas parecem ser largamente minoritários. São protestos contra a guerra. Tanto que a imprensa já compara as manifestações de agora com as dos anos 1960 contra a guerra do Vietnã.
O que interessa aqui é a intensidade da repressão a estudantes. Já são quase dois mil presos, a policia ataca com balas de borracha e gás lacrimogênio, os manifestantes são arrastados dos locais de protestos, embora estejam localizados dentro dos campi universitários, e as universidades ameaçam cancelar matrículas em massa. A violência se assemelha ao que ocorria nas ditaduras da América Latina, inclusive no Brasil.
Como isso ocorre nos Estados Unidos, tidos como uma grande e consolidada democracia? Qual a razão de tanta intolerância?
Há uma declaração da última sexta-feira (02/05) do presidente Joe Biden que pode ser tomada como explicação para a forma dura (violenta, para nossos padrões) como a polícia dissolve as manifestações de protesto: “Há o direito de protestar, mas não o direito de causar o caos”. Essa é a essência da cultura americana sobre protestos.
Não é somente nos Estados Unidos. Na União Europeia também se tenta dissolver manifestações com repressão. O entendimento consolidado é que a liberdade de manifestação, assegurado nas constituições, não pode atingir outros direitos fundamentais, como o de ir e vir, ou o respeito ao funcionamento normal das instituições, etc., etc.
Não é o entendimento que se aplica por aqui, embora o escrito na Constituição do Brasil seja praticamente o que está escrito nas constituições americana e das democracias da União Europeia.
A forma de enfrentamento de manifestações de protestos que emergiu e se consolidou no pós-ditadura no Brasil e nos países democráticos da América Latina é de tolerância quase total às manifestações sociais. Existe horror a qualquer atuação mais forte da polícia.
O MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) ou o ex-presidente Bolsonaro, com suas motociatas ou recepções barulhentas) podem fechar estradas ou aeroportos a qualquer momento e a polícia tem que ficar olhando. A população pode até ficar prejudicada, mas, parece que a não violência da repressão é muito mais democrática que os ataques que estão sendo verificados nos Estados Unidos.
Observe-se: o Brasil, um país que viveu vários períodos autoritários e tem uma democracia bem jovem, não reprime (ou quase) manifestações de protestos, e eles, os americanos, que querem dar lição de democracia ao mundo, usam da repressão violenta ao direito constitucional da liberdade de manifestação.
É bem distinto, então, o entendimento sobre um ponto crucial para a democracia, que é o direito à liberdade de manifestação. Assim também ocorre com a maneira como as duas sociedades encaram o direito à liberdade de expressão.
Nos Estados Unidos, desde a primeira emenda à Constituição, em 1791, assegura-se a mais ampla liberdade de expressão. Pode-se expressar, dizer, falar, escrever, tudo ou quase tudo. Existe, mais recentemente, proibição a qualquer fala ou publicação que contribua para a pedofilia. No Brasil, o entendimento histórico, é que a liberdade de expressão precisa respeitar o direito à honra e não pode ser usado para propagar crimes. Pela atual Constituição, também não se pode usar o direito à liberdade de expressão como objetivo de extinguir a democracia.
Nos debates políticos nos últimos anos o que se percebe é que algumas correntes fazem a defesa do entendimento norte-americano de liberdade de expressão, o que não é o entendimento da cultura brasileira, que não deixa de ser democrático, da mesma forma que as restrições à liberdade de manifestações nos Estados Unidos não tiram seu caráter e história democrática.
Lógico que pode-se até discutir mudanças de cultura jurídica, mas, pela importância do tema, teria que ser feito no bojo de uma possível reforma constitucional. Em não sendo assim, não se vai chegar a lugar algum. O resto é o vulco vulco das redes sociais.