A nota das Forças Armadas, a Constituição e a democracia
A nota mais recente das três unidades das Forças Armadas (Marinha do Brasil, Exército Brasileiro e Força Aérea Brasileira), divulgada na última quinta-feira, merece reflexões pela temeridade em que se constituiu e pelos equívocos de interpretação da Constituição.
Começa que não é função das Forças Armadas julgarem o que é excessivo no exercício do direito de manifestações nem, ao contrário, ou seja, no que deve ser restringido. Esse é um papel, segundo a Constituição, do Judiciário, se provocado para tal. Se o Judiciário se excede, o caminho para minoração do erro, segundo a Constituição, é o próprio Judiciário, através de seus mecanismos de recursos.
Outro ponto que merece atenção é que, em basicamente toda a nota, as Forças Armadas se colocam como poder moderador e acima das instituições e dos poderes constituídos. Não é assim. Basta lembrar de um simples dispositivo da Constituição para desfazer esse equívoco: o presidente da República, ou seja, o chefe do Executivo, eleito pelo povo, é o comandante supremo das Forças Armadas. Ora, se as Forças Armas estão sob (abaixo) o comando do presidente não pode querer se arvorar em força acima dos outros poderes, que são pilares da República tanto quanto o Poder Executivo.
Ao reiterar a crença na independência dos poderes, a nota pugna por atenção particular ao Poder Legislativo, a Casa do Povo, destinatário natural de anseios e pleitos da população. Há também equívoco nesse apelo. A constituição não manda nem permite que qualquer um dos poderes da República tenha mais poderes do que os outros. Aliás, nem se sabe porque a nota das unidades militares incluiu esse apelo em favor do Legislativo, uma vez que as próprias casas parlamentares nacionais não estão reivindicando essa atenção particular.
É verdade que a Constituição atribuiu às Forças Armadas, além do papel de defesa da Pátria, a função de defender os poderes constitucionais e, se chamado por algum deles, a defesa da lei e da ordem, mas não está escrito na Carta Magna que as forças militares federais tenham a função de interpretar a Constituição ou as leis e agirem, com ameaças ou intervenção, interrompendo a ordem constitucional e democrática.
O Brasil não pode conviver permanentemente com essa ideia de que em qualquer crise mais greve do poder civil, constituído pela vontade popular, através do voto, deverá haver uma solução militar. A solução será sempre pela via da democracia e de eleições como ocorre em todas as democracias do mundo.
É lamentável, mas a impressão que a nota transmitiu é que, mais uma vez, as Forças Armadas se curvaram ao desvario do presidente Jair Bolsonaro, que, perdido entre a incapacidade de mensurar e exercer suas verdadeiras funções e o desejo de impor suas vontades, se queda, quase sempre, atraído pela tentação de agir fora das quatro linhas da Constituição.